sexta-feira, 27 de julho de 2007

O homem que não envelheceu

-- Coragem, coragem.

Com o dedo no gatilho, a mão molhada de suor escorregava na pistola automática. Um homem que aparentava uns cinquenta anos, cabelos grisalhos, pele macia e bem conservada, discutia consigo mesmo no próprio quarto.

-- Se não for agora...Aperta!

Estava sentado no chão, sobre uma caixa de papelão aberta, colocada ali estrategicamente para que os pertences pessoais que ficariam de herança para o tataraneto não ficassem sujos de sangue. Como? Sim, o homem estendido no papelão, prestes a colocar um fim em sua própria vida, beirava os 160 anos, embora aparentasse ser um elegante cavelheiro de meia idade.

Há mais de 100 anos, quando completou 55, o tempo parou para Charles. Mas ele não percebeu de imediato. Na verdade, levou anos para que notasse os efeitos desse fato devastador. A princípio, o malfadado destino dava os primeiros sinais através da própria filha:

-- Para quem já passou dos sessenta, o senhor está para lá de bem – acenou.

A situação de Charles começou a ficar estranha, mesmo, quando chegou perto dos setenta.

– É impressionante como você não mudou de vinte anos para cá. Vão pensar que sou sua mãe – protestava a mulher, admirada.

Passaram-se mais dez, vinte, trinta anos. Charles viu filhos, netos, bisnetos e tataranetos nascerem, crescerem e morrerem. Viu envelhecer e morrer todos os que amou intensamente – mulher, filhos, amigos – mas, inexplicavelmente, continuava vivo e com o mesmo vigor físico de sua meia idade. Estava condenado a viver para sempre. Era o castigo que recebeu, depois de ter implorado, na juventudade, para que o tempo passasse bem devagar. Dito e feito: ainda que os ponteiros dos relógios batessem na mesma velocidade, o tempo biológico de Charles deixou de existir.

Era tão inacreditável sua condição, que chegou a ser preso por suspeita de falsa identidade. "Um homem de 100 anos não se parece nada com você", zombaram, certa vez, os servidores da previdência social. Diante de uma condição socialmente insustentável, Charles percebeu que a única forma de livrar-se desses tormentos seria negar a própria identidade e viver como indigente.

Morava num dos quartos da antiga mansão que antes fora sua e da família Castilho – mas que, hoje, quem a ocupava eram seus descendentes: a família de Hiago. O moço era o único tataraneto que sentiu compaixão pelo homem e o acolheu. Ninguém naquela casa – sua mulher Hilda, e as crianças Martha e Robson – acreditava que Charles fosse, de fato, um antepassado ainda vivo. Os pais de Hiago envelheceram e a tradição de aceitar Charles como um velho membro da família foi desaparecendo, de modo que a surpreendente história, de que aquele cinquentão era o pai do pai do pai, não convencia nem as crianças.

A família de Hiago nunca teve coragem de enxotá-lo de casa. Pensavam, os quatro integrantes, que Charles devia ter sido amigo de alguém e enlouquecera. Não custava abrigá-lo, até porque sua presença era quase imperceptível. Mas também porque trazia no rosto uma marca que, de alguma forma, consternava os membros daquela família. O tataraneto, sim, tinha certeza que alguma coisa muito especial acontecia com aquele homem – e passaria a ser seu cúmplice.

Nos longos anos de sua inexplicável existência, Charles já tinha lido todos os livros da antiga biblioteca em seu quarto. A vida, para ele, era um longo e intenso tédio. Charles desejava – durante o que esperava que fossem seus últimos dias – passar todo o tempo restante lendo sem parar. Só descansava para dormir e comer. O quarto não possuía televisão nem aparelhos eletrônicos. Não suportava o barulho mecânico do relógio, de modo que já havia perdido as contas dos dias, meses e anos em que estivera ali. Depois de ler a última linha do último livro do acervo, recomeçou pelo primeiro, em ordem alfabética, da coleção que havia montado há mais de 120 anos.

Os livros empoeirados, muitos com folhas soltas e esfareladas, eram um refúgio para a incompreensão do mundo diante daquela estranha condição. Os médicos, por exemplo, divertiam-se quando Charles implorava para que acreditassem em sua idade. Muitos dos que o conheceram já haviam suspeitado que ele não fosse humano. Devia ter vindo, talvez, de alguma outra galáxia. E, de fato, era assim que Charles se sentia, motivo suficiente para que não gostasse de sair do quarto, exceto para tomar banho de sol no gramado do quintal, quando ninguém estivesse por perto. Também gostava de debruçar na janela e ver os carros passarem pela rua Abacaxi, só para descansar a vista.

Todos seus grandes vínculos já tinham ido embora há muito, muito tempo. Nada restava a Charles a não ser esperar...e esperar, e esperar pela própria morte, que parecia jamais chegar. Cada partida de seus entes queridos havia sido uma facada no coração, que por mais pontiaguda, nunca sangrava. O que mais queria, há tanto tempo, era sentir o relógio correr no seu próprio corpo. Sentir seus ossos enfraquecerem aos poucos, definhando como uma flor depois de arrancada do caule. Sonhava chegar em frente ao espelho e ver camadas de rugas fazendo curvas sobre a pele. Desejava, com ardência, sentar-se com a dificuldade típica da velhice e pedir ajuda para se levantar.

Sonhava, quase sempre, que sentia com os dedos os primeiros sinais de seu próprio definhamento, uma condição que todos tiveram o direito de sentir, menos ele. Ao acordar do sonho, revivia um eterno pesadelo. Chegou a engolir absurdas quantidades de açucar refinado, porque ouviu, certa vez, que acelerava o envelhecimento. Mas nada era capaz de abalar sua invencível juventude. Nem mesmo sua saúde parecia apresentar qualquer fragilidade.

-- Se tem realmente a idade que diz ter, deveria estar contente – protestou Martha, a filha mais velha do tataraneto, quando o flagrou descendo as escadas, num raro momento em que fazia isto, numa tarde ensolarada.

Eu pagaria toda a fortuna do mundo para poder envelhecer, pensou Charles, em seguida. Sentia-se um peixe fora d´água em seu próprio mundo, como se não pertencesse ao complexo que lhe concebeu. Invejava as árvores, os pássaros, a grama que pisava raivosamente, e até os móveis do quarto – até estes envelhecem, quebram e são trocados por outros. Lamentava sua vida estática, inquebrável. Carregava uma alma exausta num antigo corpo jovem.

O último banho de Charles havia sido há dois meses, num dia quente de verão. A barba estava por fazer há mais tempo, de forma que estava numa imundice só. Como não se habituara a jogar fora velhos pertences – apegava-se a eles, como para que não envelhecessem – seu quarto cheirava lixo há vinte metros de distância. Os integrantes da casa passavam longe do corredor que dava acesso ao quarto do "lunático" – apelido que ganhou, carihosamente, da família.

Há anos não se sentava com a família de Hiago para cear. Não por falta de convite, mas porque não se sentia membro integrante daquele pequeno clã. Não queria interferir numa realidade que não lhe pertencia. Quanto menos incomodasse pessoas saudáveis com sua perturbadora presença, melhor seria. Por isso, contentava-se com a companhia dos velhos livros. Também por isso, recebia as refeições por baixo da porta, gentilmente cedidas por Hilda.

Os amigos de Martha e Robson sempre quiseram saber o que havia por trás daquela porta, no fim do corredor. "Está fedendo", comentou um deles. Tudo o que sabiam é que tratava-se de um velho porão trancado à chave. A rotina naquela casa era tão alheia a Charles – reuniões de festas aconteciam ocasionalmente – que chegava a não fazer diferença se ali houvesse mesmo um porão com baratas ao invés de um homem dado como louco.

Num dia cinzento e choroso, quando passava os olhos por um poema de Willian Blake – o mesmo que havia lido mais de 50 vezes, se não lhe falhavam as contas – sentiu uma angústia queimar o peito fortamente. Estava esgotado de viver. Não tinha mais forças para aguentar um dia a mais. Embora jamais tivesse compactuado com os suicidas, já que seus princípios morais eram os mesmos da juventude, sentiu uma necessidade tremenda, absolutamente incontrolável, de acabar com a própria vida. Afinal, não via outra solução que encerrasse o vazio daquela insuportável eternidade.

Possuía a estranha capacidade de fazer isso, e ia tentar. Preparou o cenário do seu fim cuidadosamente, para que incomodasse o menos possível as pessoas que habitavam aquela casa. Assim, pegou uma caixa de papelão que repousava debaixo da cama, abriu-a sobre o chão gelado e dirigiu-se ao armarinho onde guardava suas roupas. A pistola estava lá, intocável há mais de 100 anos – até ela castigada pelo tempo. O importante era que ainda conservava as balas, tudo pronto para a batalha final.

As mãos tremiam e o coração pulsava forte, mas Charles conseguiu, friamente, sentar-se sobre o papelão e apontar a arma para a própria cabeça. Faltava apenas dar o primeiro disparo, e tudo estaria terminado.

-- Aperta!

O grito rouco, incontido, ecoou ligeiramente pelas brechas da porta, atravessou o corredor e pôde ser houvido das escadas do casarão, por onde Hiago passava em direção à sala. Era um sábado de manhã, tão comum como qualquer outro dia, exceto por um detalhe que atormentou o tataraneto do velho lunático. Charles jamais emitia qualquer sumbido daquele quarto. Podia ser que estivesse morto há meses, e ninguém conseguiria notar – muito embora não se acreditasse nessa possibilidade.

De qualquer maneira, aquele som intrigou Hiago. Dirigiu-se vagarosamente em direção ao corredor fétido, por onde não passava há semanas, e colou os ouvidos na porta de Charles. Dava para ouvir o corpo do homem vacilando sobre o papelão. O que seria isso? A respiração gritava alto, rápida, intensa. Hiago sabia que alguma coisa estava muito errada.

Num impulso só, empurrou a porta, que apesar de pesada, estava aberta, como sempre. Deparou-se com o tataravô naquela cena constrangedora. Charles petrificou-se tanto pela surpresa de alguém ter entrado em seu quarto quanto pelo fato de ter sido pego em flagrante num momento tão infame. Seus planos estavam arruinados, pensou.

-- O que é isso, Charles?

Silêncio no quarto.

-- Não quero mais isso aqui. Viva como uma pessoa comum, ou saia desta casa.

As palavras bateram em Charles como uma flecha dolorida. Não queria sair de seu único refugio, ainda mais quando a tentativa de livrar-se do mundo havia sido frustrada. Sabia que suas opções não eram muitas.

-- Tome um banho e arrume-se. Amanhã você vem conosco ao Parque das Águas.

Charles fitou Hiago com uma expressão de horror.

-- Não estou pedindo, estou mandando, Charles.

Os dois homens aparentavam ter a mesma idade, e se olhavam como se fossem dois velhos amigos de escola, cuja amizade permaneceu. Alguma coisa no olhar terno de Hiago muito lembrava as pessoas que Charles amou no passado. Havia uma inexplicável ligação entre ambos, como se soubessem, sem que houvesse qualquer comprovação, que faziam parte do mesmo sangue. A ternura de Hiago, contudo, não anulava sua dureza.

Fazia um sol ardente na manhã do dia seguinte. Hilda já havia preparado os lanches e esperava Hiago no carro, junto de Martha e Robson. Aquele passeio era habitual aos domingos. As crianças levavam bola de futebol e o casal, jornais e livros. Seria um passeio qualquer, não fosse a presença do convidado ilustre, que até então só Hiago sabia. Um silêncio perturbador tomou o ar quando Hiago apareceu com Charles em direção ao carro. Esposa e filhos fitavam, sem piscar, aquela cena inacreditável. Difícil compreender que aquele homem de barba feita, sapatos engrachados e um terno de corte impecável – fora de moda, verdade – fosse o mesmo porco-espinho que morava num verdadeiro depósito de lixo.

Charles se dirigiu ao carro e cumprimentou Hilda e as crianças com um sorriso tímido, meio a contragosto. Eles, que nunca haviam visto aquele ser como um homem normal, ficaram sem reação. Martha avisou que não queria ir mais.

-- Vamos todos, nós e Charles. E o tratem muito bem.

Aquele pedido soou como uma intimação. Dentro do carro, o constrangimento era visível. Charles e as crianças mal podiam se olhar. Ainda bem, pensou Hilda, que o parque ficava próximo.

Já sob uma árvore do Parque das Águas, os cinco encontravam-se sentados em meia lua. Observavam os passantes e emitiam comentários superficiais sobre o tempo. Via-se que Hiago tentava, a todo custo, enturmar Charles à família. Mas o convidado não estava interessado em uma palavra do que diziam. Olhava desesperadamente para o chão, como que implorando aos céus para voltar logo para casa.

O som ambiente irritava seus ouvidos e a luz do parque parecia cegá-lo completamente. Viu Martha e Robson se dirigirem a uma quadra de esportes com a bola.

-- Por que não vai com eles, Charles? – indagou Hiago, forçosamente.

Charles não gostava de argumentar com o tataraneto. Absolutamente contrariado, levantou-se sem dizer uma palavra e seguiu as crianças até a quadra. O caminho até lá era torturante e constrangedor. Mas a cada passo, o sol que batia em sua pele parecia aquecer, carinhosamente, sua alma congelada. Aquilo lhe deu um conforto momentâneo. Viu Martha e Robson correrem atrás da bola, com uma felicidade natural, típica da infância.

Lembrou-se da sua, tão distante, e uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo. Evaporou com o calor do sol. Sentiu uma profunda vontade de correr com eles, como um animal solto em seu habitat depois de anos na clausura. As crianças passaram-lhe a bola, que rolou por debaixo de seus pés. Charles chutou longe, num impulso animalesco, e saltitou ofegante em sua direção. Nem percebeu que corria e sorria com as crianças, numa ingenuidade tão infantil quanto a delas.

Aquele sorriso não era somente externo. O "lunático" de 160 anos acabara de redescobrir a vitalidade condenada por si próprio. Pensou, ainda sob o sol daquele domingo, que valia a pena viver. Charles amava a vida.

Depois daquele dia, limpou o próprio quarto, jogou os velhos pertences fora, doou livros que não leria mais e passou a sentar-se junto à família nas refeições, todos os dias. Hiago, Hilda, Martha e Robson esqueceram o antigo Charles e descobriram uma pessoa de profundo valor, a quem aprenderam a admirar. Um sábio com memória histórica impressionante, diziam. Não interessava a mais ninguém a idade que dizia ter – e Charles também não falava sobre isso. Era outra pessoa. A única coisa que importava para Charles, daqueles dias para frente, era que queria viver muito e intensamente.

Todos os dias caminhava pela Vila das Frutas, contornava quarteirões, cumprimentava os pedestres e respirava intensamente a brisa daqueles dias. Foi chamado pelos vizinhos para cuidar dos jardins domésticos, uma de suas grandes habilidades do passado. Sentia-se jovem e agradecia aos céus pela chance de não envelhecer.

O novo homem viveu assim por mais alguns anos. Até o dia em que olhou-se no espelho com mais atenção. Algumas rugas que não existiam instalaram-se em seu rosto com uma rapidez impressionante. As mãos haviam ganho algumas sardas, tipicas da velhice. Os músculos já não eram os mesmos de antes – pareciam atrofiar a cada dia. Os fios do cabelo caíam com maior rapidez. Sua visão também não era a mais mesma.

Martha e Robson cresceram e aprenderam a amar o velho Charles até o dia de sua morte. Foi numa terça-feira de abril, próxima ao outuno, que Charles deu seu último suspiro, dormindo como um bebê, na cama de quase um século. Aparentava ter quase 80 anos. Sua partida provocou lágrimas inconsoláveis naquela família, mas Charles estava sorrindo, porque o relógio voltou a funcionar.